Em alguns lugares do mundo, as cidades proporcionam vantagens para carros com mais de um passageiro. São pistas exclusivas para se evitar rodovias super engarrafadas, na tentativa de encorajar mais motoristas a entrar no “car pool” e assim tirar carros da pista. Mas muitas vezes aqueles corredores ficam praticamente vazios, enquanto as três pistas do lado parecem um estacionamento, totalmente paradas, cada carro com um passageiro frustrado, solitário. É um símbolo da era em que vivemos. Vidas cada vez mais isoladas, pessoas sozinhas em meio ao mar da humanidade.
Infelizmente, isolamento e solidão caracterizam muitas igrejas, onde os membros assistem os cultos como espectadores, chegam depois do início e saem antes do final, sem cumprimentar ninguém, sem assumir nenhum compromisso com a família da fé. Às vezes se escondem por trás de declarações do tipo “Minha fé é uma questão particular”, ou “Sou muito tímido” ou “Não é meu jeito expor minha vida para outros.”
Quando Caim tentou disfarçou o pecado de ter assassinado seu próprio irmão, Abel, ele perguntou sarcasticamente para Deus, “Sou guardião do meu irmão?” (Gn 4.9). Pouco ele imaginava que a resposta correta seria, “Sim!” Na família biológica, assim como na família de fé, somos, sim, guardiões uns dos outros. Um texto que enfatiza essa verdade é Gálatas 6.1-5.
Contexto: No final de Gálatas 5, lemos sobre as diferenças entre a vida no Espírito e a vida na carne. O Espírito (5.22) produz o fruto de virtudes que caracterizam a vida de Cristo de forma sobrenatural em nossas vidas (veja Gal 2.20). Esse “fruto” não é algo místico, esotérico ou abstrato. A vida de Cristo vivida em nós pelo Espírito produz consequências concretas e práticas, especialmente em relação aos relacionamentos no Corpo de Cristo. É um “ANDAR” no Espírito, dentro de uma família, a igreja, o Corpo de Cristo!
O Espírito Santo, nos IMPULSIONA em direção a outros. Ele é um Espírito de unidade, de amor, de relacionamentos.
Gálatas 6.1-5 apresenta três situações distintas que envolvem relacionamentos no Corpo de Cristo, onde somos, sim, guardiões dos nossos irmãos.
I. Eu Sou Guardião do Desviado (6.1)
Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais,
corrigi-o com espírito de brandura; e guarda-te para que não sejas também tentado.
O texto começa falando sobre a família da fé (note a palavra “irmãos”) em que algum membro cai em pecado. Neste momento, EU sou guardião do meu irmão que se mostra mais fraco porque encontra-se preso pelo pecado.
Fica difícil decidir se o irmão foi “pego”, num pecado secreto, ou se de repente ele mesmo foi “surpreendido” por algo que não reconhecia como pecado. O que fica claro é que o irmão que percebe que o outro está enredado numa transgressão (a palavra “falta” significa errar o alvo ou ir além dos limites traçados pela santidade de Deus.) Restaurar ao irmão cabe aos “espirituais”, ou seja, aqueles que “andam no Espírito” (5.25) e produzem o “fruto do Espírito” (5.22), que são controlados não pela carne mas pelo Espirito (Ef 5.18), assim deixando Cristo viver através deles (Gal 2.20). Note que o texto NÃO significa que temos a responsabilidade de “farejar” pecado na vida do irmão, procurando erros como um detective atrás de pistas escondidas.
A palavra “restaurar” literalmente significa “endireitar” ou “consertar”. Foi usada de ossos quebrados ou de uma rede de pescar rasgada, mas que foi emendada. O irmão que está sendo rasgado pelo pecado precisa ser restaurado com firmeza e amor.
Note que devemos corrigir o irmão com brandura. A palavra significa “mansidão”, um espírito humilde e gentil, que não deixa de confrontar o erro, mas o faz falando a verdade em amor (Ef 4.25). A pessoa “espiritual” não é arrogante no confronto. Está sempre ciente da sua própria fraqueza. A palavra “guarda-te” descreve uma prática constante de auto-exame que reconhece que também sou vaso de barro e que se não fosse a graça de Deus, eu mesmo estaria na mesma situação que meu irmão.
Como Jesus disse, temos que primeiro tirar a trave do nosso próprio olho antes de mexer com o argueiro no olho do irmão (Mt 7.3). Às vezes, o que mais me irrita nos outros é o mesmo pecado que tenho em minha vida. Por exemplo, orgulho é o pecado que mais detestamos nos outros, e menos detectamos em nós mesmos.
Resumindo, note que existem pelo menos quatro condições para corrigirmos nosso irmão:
1. Intimidade: um relacionamento de irmãos
2. Espiritualidade (“vós que sois espirituais”)
3. Humildade (o espírito de brandura)
4. Integridade (vigia pessoal, para não cair na mesma tentação)
Somos muito prontos a nos desculpar por não nos preocupar com o desviado, ou até mesmo, o cristão amigo que está enredado em algum pecado. “Não é meu negócio”. “Quem sou eu?” “Ele não vai me ouvir”. Mas o texto fala no imperativo. Eu SOU guardião do meu irmão! Neste momento, por causa do pecado, ele é o irmão mais fraco. Se eu não chegar junto, é capaz de ser levado pelo seu pecado até o desastre. É isso que o autor de Hebreus quer dizer quando diz, Exortai-vos mutuamente, cada dia, durante o tempo que se chama Hoje, a fim de que nenhum de vós seja endurecido pelo engano do pecado (Hb 3.13).
II. Eu Sou Guardião do Sobrecarregado (6.2,3)
Levai as cargas uns dos outros e, assim, cumprireis a lei de Cristo.
Porque, se alguém julga ser alguma coisa, não sendo nada, a si mesmo se engana.
O texto continua falando de uma segunda situação em que o cristão espiritual é guardião do seu irmão sobrecarregado. Alguns acham que a “carga” em vista é a situação que levou o irmão de versículo 1 ao pecado. Mas parece melhor encarar versículo 2 como tratando de uma segunda situação que envolve relacionamentos na família de Deus, em que um irmão se encontra debaixo de uma sobrecarga de dificuldades e responsabilidades.
A palavra “cargas” tem a conotação de algo muito pesado, uma “barra pesada”. Trata-se de algo insuportável, um peso que o irmão não consegue carregar. Aqueles que são “espirituais” (Gal 5.22, 6.1), recebem uma ordem de ajudar a “carregar” o fardo desses irmãos o tempo necessário (o verbo é presente).
O texto não tem em vista situações que envolvem tentação ao pecado. 1 Coríntios 10.13 nos lembra que ninguém é tentado além das suas capacidades de suportar. É possível dizer “Não” ao pecado. A situação em vista em Gálatas 6.2 tem mais a ver com circunstâncias insuportáveis da vida (veja Tiago 1.2-4).
Há duas implicações desse mandamento: Primeiro, devemos estar prontos para socorrer irmãos necessitados. Segundo, precisamos estar dispostos a aceitar socorro quando nós mesmos nos encontramos em situações insuportáveis. Para muitos de nós, é mais fácil socorrer do que ser socorrido. Mas todos nós passaremos por momentos de crise, e não podemos impedir que o Espírito use a vida do nosso irmão para nos apoiar em momentos oportunos.
Nestas horas a “lei de Cristo”, ou seja, a lei de amor ao próximo (Jo 13.34,35; Mt 5.14; 22.39) entra em vigor. A vida de Cristo vivida em nós pelo Espírito é uma vida OUTROCÊNTRICA! Assim como Filipenses 2.1-8 descreve, essa vida considera os outros superiores a si mesmo, esvazia-se de supostos “direitos”, carrega a cruz de outros, arcando com as consequências do pecado de outras pessoas.
Às vezes a nossa tendência é olhar para o irmão em apertos e julgá-lo em vez de ajudá-lo. Olhamos para o irmão que está num sufoco financeiro e pensamos, “Ele caiu nesta porque fez isso, aquilo e outra coisa. Problema dele.” Vemos uma mãe fazendo malabarismos para dar conta de três crianças pequenas e resmungamos, “É isso que acontece quando tem filhos um após o outro”. Percebemos que um irmão não sabe dizer “Não”, mas não dá mais conta dos seus afazeres, e cruzamos os braços dizendo, “Talvez agora aprenda a ser menos pau-para-toda-obra”. Em vez de chegar junto para aliviar um pouco o fardo uns dos outros, acrescentamos o peso da nossa crítica! Não é o que Cristo faria!
Versículo 3 é um pouco difícil de interpretar. Sugere uma razão pela ordem: “Porque se alguém julga ser alguma coisa, não sendo nada, a si mesmo se engana.” Paulo quer dizer que ninguém é importante demais na família cristã, que não precisa arregassar as mangas e entrar debaixo do fardo do seu irmão para carregá-lo um pouco. Essa é a vida do nosso Mestre! Foi o que Jesus fez quando lavou os pés dos discípulos (Jo 13). Uma paráfrase seria: Se você se diz “cristão”, ou seja, um seguidor de Cristo, mas na hora de agir como Cristo, você cai fora, você se engana! É papo furado!” A beleza do Corpo de Cristo é que o irmão mais humilde pode ser uma bênção na vida do mais “sofisticado”, e vice-versa! Somos todos irmãos, sem Classe “A”, “B”, “C” ou “D”.
Romanos 15.1 ecoa essa mesma ideia: Ora, nós que somos fortes devemos suportar as debilidades dos fracos, e não nos agradar a nós mesmos.
III. Eu Sou Guardião do Acomodado (6.4, 5)
Mas prove cada um o seu labor e, então,
terá motivo de gloriar-se unicamente em si e não em outro.
Porque cada um levará o seu próprio fardo.
O texto continua falando sobre relacionamentos, mas precisa ser entendido dentro do seu contexto pois parece contradizer o que Paulo acabou de dizer sobre o carregar do fardo do irmão (vs. 2).
Duas palavras diferentes são traduzidas “fardo” no texto (6.2, 5). A primeira no vs. 2 significa um peso enorme, insuportável, que precisa ser compartilhado ou, senão, acabará esmagando a pessoa. Mas o fardo do vs. 5 fala de pesos “normais” que alguém carrega como parte comum da vida de todos. Em alguns casos, o termo se refere a fardos pesados e difíceis (Mt 23.4, Lc 11.46, At 27.10), e outras vezes se refere ao “fardo” de Jesus, que é suave e leve (Mt 11.30).
Neste contexto, parece que vs. 4 está dizendo o seguinte: Cada pessoa é individualmente responsável na vida cristã por certos deveres, comportamentos e atitudes. “Prove” é um imperativo que traduz uma palavra que significa “demonstrar, revelar, mostrar genuíno”. A ideia é, “Cada um mostre a autenticidade do trabalho que é propriamente dele”. Em outras palavras, embora haja cargas que só podem ser carregadas com o auxílio de outros, existem outras que fazem parte da rotina da vida cristã, e que precisam ser cumpridas na dependência total do Espírito. Mas para isso, a pessoa não deve ficar acomodada, encostada, sempre carente e necessitada, mas aprendendo a andar com as próprias pernas.
Implícito no texto é que pessoas que fazem corpo mole em vez de desempenhar suas responsabilidades precisam ser confrontadas e desafiadas, não socorridas. Os “fortes” precisam evitar a “síndrome de salvador”, criando um relacionamento de dependência doentia e de paternalismo. Temos que evitar tentar ser Deus na vida da pessoa, especialmente em situações de aconselhamento. O irmão “espiritual” tem o dever neste caso de ajudar o irmão acomodado a desempenhar suas próprias responsabilidades. O texto traz equilíbrio: carregar os fardos insuportáveis não significa carregar todos os fardos (veja também 2 Ts 3.10, 1 Ts 5.14).
Mas, o que significa a cláusula “então terá motivo de gloriar-se unicamente em si e não em outro” (v. 4)? Sabemos que Deus não compartilha Sua glória com ninguém (Sl 115.1; Ef 2.8,9; Jr 9.23,24; 2 Co 3.5,6, 4.7). A ideia é que a vida de Cristo precisa ser manifestada na vida de cada um pela dependência pessoal dEle. Em outras palavras, se vivo na dependência de irmãos para me socorrer, será a vida deles sendo vivida em mim e não a vida de Cristo. Neste caso, eu mesmo não experimentarei o poder de Cristo em minha vida, como minha suficiência.
Que possamos caminhar juntos na rodovia da vida. Assim não somente iremos mais longe, chegaremos ao destino mais rápido e com mais saúde espiritual. A vida cristã não se vive sozinha, isolada de outros motoristas. Somos uma família andando de caravana, e precisamos uns dos outros.
-Sou guardião do desviado: Preciso corrigi-lo.
-Sou guardião do sobrecarregado: Preciso carregar parte do seu fardo.
-Sou guardião do acomodado: Preciso confrontá-lo e desafiá-lo a depender mais de Cristo.
Eu sou, sim, guardião do meu irmão!
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